sábado, 31 de outubro de 2009

Reinações de Narizinho

O vídeo abaixo trás o ator Paulo Betty lendo o capítulo “A pílula falante”, do livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Esse livro, de 1931, é composto de pequenas histórias, previamente publicadas, que foram divididas em capítulos. Nesse, especificamente, ele explica como a boneca Emília começou a falar.

Paulo Betty conseguiu o tom certo na leitura, o que fez desse um dos pontos altos da Bienal. Vale conferir...

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Musa híbrida

As palavras não fazem mais sentido agora. E não são só os adjetivos que se tornam bijuterias perto dela, mas mesmo os substantivos não dão conta deste arrebatamento!

A pela quente, as pernas envolventes, a boca estonteante, aqueles olhos verdes de maré cheia... E que bunda. Eu sou todo arrepio e tesão diante da musa.

Musa híbrida, musa negra, musa brasileira, musa - escultura que resume qualquer definição e expande qualquer sensação de beleza.

Eu disse, as palavras não dão conta. Creio mesmo que o cotidiano envergonha-se diariamente de não poder oferecer cenário melhor para acomodá-la.

Passeia entre devaneios de insanos e cafajestes, deixando no ar o canto que faz o mais bruto marinheiro saber o que é paixão.

Sabes, onça. E também sei. Devoras com este sorriso aberto (ou é a fatalidade da sua tristeza) qualquer defesa mundana. És fantástica, seja isso bom ou ruim. Eu sei.

C.C.J.

domingo, 18 de outubro de 2009

Entrevista com Paulo José

*Escrito por Rafael Oliveira

Antes da entrevista, Paulo José pediu tempo para tirar uma foto com um fã mirim. Aos 72 anos, o próprio ator e diretor ainda mantém um pouco da curiosidade e entusiasmo infantis dentro de si. Curador do projeto Livro em Cena, sucesso de público da Bienal que levou atores até o palco para ler obras de escritores consagrados, Paulo precisou reler clássicos da literatura brasileira para a escolha dos trabalhos que seriam contemplados. Neste processo de resgate, reencontrou a infância: “'Reinações de Narizinho' (de Monteiro Lobato) é saborosíssimo”, admitiu. Abaixo, ele fala mais sobre essas redescobertas, a curadoria do Livro em Cena e critica os hábitos de leitura do brasileiro.

Como você avalia o Livro em Cena?
Deu muito certo. Houve uma adesão maciça do público e dos atores. Todos os convites que eu fiz foram aceitos. Houve até quem lamentou por não estar aqui, como a Patrícia Pillar, que está viajando pelo país para divulgar seu filme, e as Fernandas (Montenegro e Torres), que estão em cartaz com suas respectivas peças.

Como surgiu o projeto?
A ideia foi do Robert Feith (vice-presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), entidade que promove a Bienal). Ele queria ampliar as atrações para evitar a estagnação. Inicialmente ofereceu o projeto para a Monique Gardemberg (cineasta), que me recomendou para ser o curador devido ao meu conhecimento em literatura brasileira.

Quais foram os critérios para a escolha dos atores e dos escritores homenageados?
Procurei chamar grandes atores que fossem reconhecidos não apenas pela TV, mas também pelo teatro, pois era indispensável que soubessem ler bem. Já para decidir os autores eu primeiro escolhi Machado (de Assis). A partir dele, fechei em mais 19 nomes. Como só entrariam 12, fui optando por aqueles que me trariam menos problemas com a questão dos direitos autorais.

O evento foi sucesso de público todos os dias. Como você enxerga a relação do brasileiro com a literatura?
Ele lê muito pouco. Aqui no Brasil a biblioteca não faz parte da casa das pessoas. E o pior é que ninguém acha isso estranho. Para mim ela deveria ser tão indispensável quanto um fogão. Com o sucesso da Bienal e do livro em cena, espero que alguma luz se acenda na cabeça dessas pessoas.

O que está lendo atualmente?
Tenho relido muitas coisas. Depois de certa idade você começa a reler aquilo que leu quando ainda era cedo demais para entender (Paulo faz uma pausa) ou quando já era tarde demais.
Com o quê, por exemplo? (neste momento, ele se levanta e mostra a pilha de livros que carrega consigo. Entre as obras estão "Literatura Brasileira: das origens aos nossos dias", de José de Nicola; "A hora da estrela", de Clarice Lispector e "Cidades Inventadas", de Ferreira Gullar)
Muitas coisas. Como além de ser curador do projeto eu também leio trechos no palco, precisei reler todos os autores que foram contemplados. Um dos que mais têm despertado minha atenção é o Ferreira Gullar (e se propõe a ler em voz alta "Subversiva", de Ferreira Gullar, que você assiste no vídeo abaixo). Também tenho lido Monteiro Lobato. Estou impressionado com "Reinações de Narizinho". Era o livro da minha infância. Estou enxergando ali o que eu não era capaz de ver quando li pela primeira vez, ainda criança. É saborosíssimo.

*Rafael Oliveira faz parte do programa de treinamento do O Globo e fez essa entrevista no último dia da Bienal para o blog do Prosa e Verso.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Esquinas

Era só mais uma mulher,
sorrateira como todas as outras;
derradeira como só ousaria ser Capitu.

Deitou-se com seu vestido azul
e envolveu-me em tramas ocas
fazendo questão de ser uma qualquer.

Das pétalas de bem-me-quer / mal-me-quer
fez Maná para tantas bocas
- quantas foram abertas por meu exu?

Morri mil vezes como um pio
- brinquedo velho nestas mãos loucas.
Terás logo outro moribundo para moer.

C.C.J.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Lua nova demais

Em mais uma produção tirada da Bienal, coloco abaixo o áudio de Elisa Lucinda recitando "Lua nova demais", de sua autoria. É interessante perceber como ela fala de coisas tão atuais de maneira tão bonita. Nem todo mundo tem o dom de ver poesia no cotidiano...


Dorme tensa a pequena
sozinha como que suspensa no céu
Vira mulher sem saber
sem brinco, sem pulseira, sem anel
sem espelho, sem conselho, laço de cabelo, bambolê
Sem mãe perto,
sem pai certo
sem cama certa,
sem coberta,
vira mulher com medo,
vira mulher sempre cedo.

Menina de enredo triste,
dedo em riste,
contra o que não sabe
quanto ao que ninguém lhe disse.
A malandragem, a molequice
se misturam aos peitinhos novos
furando a roupa de garoto que lhe dão
dentro da qual mestruará
sempre com a mesma calcinha,
sem absorvente, sem escova de dente,
sem pano quente, sem O B.
Tudo é nojo, medo,
misturação de “cadês.”

E a cólica,
a dor de cabeça,
é sempre a mesma merda,
a mesma dor,
de não ter colo,
parquepracinha,
penteadeira,
pátria.
Ela lua pequenininhanão tem batom, planeta, caneta,
diário, hemisfério,
Sem entender seu mistério,
ela luta até dormir
mas é menina ainda;
chupa o dedo
E tem medo
de ser estuprada
pêlos bêbados mendigos do Aterro
tem medo de ser machucada, medo.
Depois mestrua e muda de medo
o de ser engravidada, emprenhada,
na noite do mesmo Aterro.
Tem medo do pai desse filho ser preso,
tem medo, medo
Ela que nunca pode ser ela direito,
ela que nem ensaiou o jeito com a boneca
vai ter que ser mãe depressa na calçada
ter filho sem pensar, ter filho por azar
ser mãe e vítima
Ter filho pra doer,
pra bater,
pra abandonar.

Se dorme, dorme nada,
é o corpo que se larga, que se rende
ao cansaço da fome, da miséria,
da mágoa deslavada
dorme de boca fechada,
olhos abertos,
vagina trancada.
Ser ela assim na rua
é estar sempre por ser atropelada
pelo pau sem dono
dos outros meninos-homens sofridos,
do louco varrido,
pela polícia mascarada.

Fosse ela cuidada,
tivesse abrigo onde dormir,
caminho onde ir,
roupa lavada, escola, manicure, máquina de costura, bordado,
pintura, teatro, abraço, casaco de lã
podia borralheira
acordar um diacidadã.
Sonha quem cante pra ela:
“Se essa Lua, Se essa Lua fosse minha...”
Sonha em ser amada,
ter Natal, filhos felizes,
marido, vestido,
pagode sábado no quintal.

Sonha e acorda mal
porque menina na rua,
é muito nova
é lua pequena demais
é ser só cratera, só buracos,
sem pele, desprotegida, destratada
pela vida crua
É estar sozinha, cheia de perguntas
sem resposta
sempre exposta, pobre lua
É ser menina-mulher com frio
mas sempre nua.

(Poema encomenda,1995)

domingo, 4 de outubro de 2009

Louco por você

Girei a maçaneta da porta branca do meu apartamento como faço todo dia, mas não consegui completar o movimento. Como uma interna bomba de efeito retardado os olhos daquela estranha na banca de jornais venceram minha rotina. Talvez fossem verdes ou cor de mel, na verdade eu não prestei muita atenção nisso. O impactante era o olhar - sabe aquela pessoa que parece ter certeza sobre todos os passos? Será que eu fiquei encarando? Será que eu deveria voltar até lá? Mas por que ela ainda estaria lá? Não sei...

"Tell me why / I love you like I do / Tell me who / can stop my heart as much as you"

É um homem meio esquisitão... Olha quem fala, até parece que a minha família é normal. Na verdade ele nem é estranho, é só desajeitado. E tem o seu charme. Ah, lá vai você pensando nisso outra vez! Eu não vou deixar você cair nessa novamente, não, mocinha. Já não basta o último fulano? Está na hora de montar o seu escritório, é nisso que você tem pensar, na sua vida, no seu trabalho. Será que eu fiquei encarando? Talvez eu deva voltar até a banca, ver se ele ainda está lá, não me custa nada...

"Tell me all your secrets, and I'll tell you most of mine, / They say nobody's perfect, well, thats really true this time"

Acho que a gente consegue. O apartamento é confortável, barato e bom para nós dois e para o cachorro. Vamos dividir a sala para ficar perfeito: suas tralhas do escritório ficam alí perto da cozinha e os meus aparelhos de edição deste lado aqui, na janela, que tal? Não, não, não, meu anjo, eu não falei tralhas? Falei? Mas não foi tralha que eu quis dizer, eu disse tralha só que com carinho, é diferente. É verdade, vem cá... Agora que tal colocar este sofá do outro lado da sala? Não? Tudo bem, foi só uma sugestão mesmo. Pensa um pouco melhor, olha... Não? Tudo bem.

"I don't have the answers, / I don't have a plan / All I have is you, so darling, help me understand"

Eu acho que você deve aceitar sim, vai ser bom para você, que vai ter algo fixo, e para nós dois também. Os horários a gente acerta, olha: quando eu estiver saindo para trabalhar de manhã e você chegando, a gente se vê; quando você for sair, eu vou estar chegando e a gente se vê também. A gente aguenta por algum tempo e vê como fica. Vai ser bom para você, não era a chance que você queria tanto? Deixa de ser bobo, ele também vai se adaptar bem, não vai? (Latido) Viu? Vai dar certo sim, como sempre.

"(What we do) You can whisper in my ear / (Where we go) Who knows what happens after here"

De onde você tirou a ideia de que meu primo e sua irmã poderiam ter algum tipo de relacionamento além de serem meu primo e sua irmã?! Não tem cabimento. Me passa o sal, por favor? Daqui a pouco nossas famílias vão estar instaladas aqui, este apartamento virará um campo de guerra. Bobagem? Então, tá. Me passa o arroz, sim? (Telefone) Quem era? Vai, quem era? Ahá! Está bem, não vou dizer. Me passa as batatas, por favor? Está ótimo o jantar, sabia? Você sabia? Porque eu sabia, eu sabia! Me passa o sal de novo, por favor?

Let's take each other's hand as we jump / in to the Final Frontier

Eu preciso te dizer uma coisa. Sim, é boa, eu acho. Por que, você acha que não é? Deixa eu falar. Eu acho que a gente deveria tentar. Como assim tentar o que? Há quanto tempo estamos juntos? E a nossa relação é boa, não é? Temos uma vida boa, não é? Então... Não, não é ter outro cachorro! Eu quero ter um filho. Você está bem? Você não quer? Fala alguma coisa. Claro que é muita responsabilidade, mas estamos preparados. Olha só, nosso cachorro está bem, não é? Temos bons empregos, um apartamento bom e nos amamos, P.

I'm mad about you baby, / Mad About You...

Uma pena que a banca de jornal onde nos encontramos pegou fogo, queria que nossa filha conhecesse o lugar onde os pais dela se conheceram. Aliás, o que você estava fazendo lá naquele dia, você nem perto morava? Eu também não lembro, só sei que era tarde, estava frio e eu não sei porque estamos tendo esta conversa agora... Tem certeza que é a minha vez de ir ver o bebê? Está certo, está certo, já estou indo, pode voltar a dormir. Lá vamos nós, neném. Isso, isso, eu amo você, como amo sua mãe. Está ouvindo, J.?

C.C.J.

Aqui jaz

Ei, vamos entrando, claro! Sente-se ao meu lado. Há quanto tempo não nos vemos? Ah, não importa... Fale-me como estão as coisas com você. Aliás, e aquela ideia, o projeto do qual você sempre falava...

Não, nunca pronunciei estas palavras. Olho para o cômodo e são apenas quatro paredes, uma porta e uma janela guardando uma espécie de cena montada para um filme de enredo barato e custos baixos, o meu monólogo.

Eu até ligaria para você - quem? -, mas me falta o número. É, talvez você só tenha esquecido de me passar no nosso último encontro. Quando foi mesmo? Acho que estou tendo um pequeno problema de memória.

Porque esta casa não tem espelhos e inconscientemente eu devo ter feito isso para me proteger quando o futuro chegasse. Eu já estava prevendo que ele bateria na porta e já sabia o que ele traria para mim.

Sim, sim, sim... Nunca usei muito esta palavra. Tantos atalhos pensei ter pego vida adentro e não devo ter prestado atenção nos diversos sinais - dizem que há esse tipo de contato divino conosco. Não que tenham me falado nada, apenas ouvi por aí.

Eu fico pensando nisso tudo, nascer, crescer, viver, morrer e os meus advérbios, o modo como conjugo os verbos da minha existência são sempre uma forma de precaução, uma pré-defesa no julgamento que faço de mim.

E sabe o que é? Não há nada. Substancialmente nada. Esses poucos móveis não são herança, e sim obstáculos para os meus passos aqui dentro deste cubículo: coração, pulmões, rins, estômago. Estas artérias não me levam a lugar nenhum?

Ninguém. Fico pensando no enterro. Quem vai dar por falta de mim e despachar o meu corpo. O mau cheiro me denunciará? Velório, enterro, quem cuidará disso? Terei um? Porque eu estava pensando se não seria bom ser cremado...

Dia desses escrevi algumas frases soltas em uma folha já amarelada. Poderiam ser colocadas na minha lápide. É mórbido? Talvez, mas enquanto estou aqui apenas esperando este momento... Não há ninguém para notar.. Aqui jaz.

C.C.J.