sábado, 11 de julho de 2009

Sem título I

O som pesado e rápido atravessou seu peito como um mau pressentimento. Podia ser fim de tarde, podia ser já madrugada, a preocupação arranhava seu coração, subia pela garganta e ganhava o pequeno cômodo em forma de roucos gemidos, baixos, que aquela altura nem as paredes ouviriam. Atordoada há tanto tempo, não distinguia mais se imaginara ou ouvira o estampido.

Talvez chovesse juntamente com o pôr-do-sol, mas o cheiro úmido que lhe invadia as narinas não era daquele tempo, vinha de outrora, quando ainda tinha sensibilidade para distinguir essas peculiaridades dos dias de verão. Não havia mais terra molhada sob seus pés, delicadamente pintados de vermelho-rubi... Suas unhas descascadas buscavam firmeza naquele jogo de azulejos frio e sem graça.


Pensou que (o barulho) pudesse ser o prenúncio da chegada de seus salvadores. Quem sabe? Sabia que não. Aquela esperança morreu nela após, supunha, meses de ilusão. Sorrateira, buscava sempre uma brecha em seu ânima para renascer montada em um cavalo branco. Desistira, aprimorando gradualmente a sua resistência e mergulhando cada vez mais em si mesma.

Durante o que pareciam ser horas, depois pastosamente diluídas em dias e, finalmente, convertidas simplesmente em tempo, indagava-se sobre o motivo de estar ali. Aquelas paredes não lhe diziam nada, aquela comida metodicamente oferecida em uma espécie de tigela era um ritual desconhecido, aquele silêncio cirúrgico a que a submetiam não lhe fazia sentido.

Guardou a sua imagem por um longo período. Os longos cabelos castanhos moldando o rosto arredondado cravejado por olhos verdes como o mar depois do temporal; a pele delicada qual um arco-íris; os seios em forma de fruta madura; as pernas longas, mas bem torneadas; o sexo jovem! Todas as sensações diluíram-se na urina e nas fezes acumuladas para trás daquele bloco de cimento.


As mãos já em frangalhos de socar tantos fantasmas buscam o fio que vá acender a luz ou descortinar a história que estão escondendo. Entrei em uma espécie de tragédia contemporânea e me esqueci de sair da personagem, ela tenta. Talvez seja um pesadelo - isso, como quando era criança... Mas já fora criança?... Mas não era mais criança?...


Não percebia mais se estava vestida ou nua, se enxergava ou se já era cega, se ainda sabia transformar pensamentos em fonemas. Em algum instante deixou de ver sentido em clamar. Lembrava, um fiapo de memória, que um dia acreditou em Deus. Chegou mesmo a crer que existia, a imagem e a semelhança Dele, uma centelha da Sua dádiva. O que tinha agora era o sangue denso escorrendo-lhe pela boca. Aquele rio leitoso era o mais perto que chegava da vida.

Mas houvera um som. E talvez ainda existisse um mundo lá fora e alguém dentro daquele cômodo e mesmo dentro de si. Quiçá uma saída, uma promessa de ao menos devolvê-la ao ponto de onde fora arrancada – uma promessa embutida em todas as rupturas. Não sabia. Talvez mesmo não houvesse existido aquele som.


Poderia estar chovendo lá fora, garoa fina, um mundo inteiro triste por ela. Não recordava que deveria existir alguém lá fora procurando. Cada gota d’água um tipo de pedido de desculpas pelo seu sofrimento. Mas sofreria ela ainda agora? Não sabia.

C.C.J.

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