quarta-feira, 1 de julho de 2009

Traduzindo "Traduzir-se"

Posto aqui uma leitura do poema "Traduzir-se", de Ferreira Gullar, poeta brasileiro, vivo, que participou do concretismo e do neo-concretismo, foi presidente do Centro Popular de Cultura (CPC), um dos fundadores do Teatro Opinião, filiado ao Partido Comunista, preso, exilado, absolvido, preso, solto. Desde que abandonou o experimentalismo de vanguarda, em 61, é crítico do modernismo e pós-modernismo na arte. “Traduzir-se” está no livro Na vertigem o dia, de 1980, e segue, ao fim do texto.

A leitura do poema é antiga de dois anos. Quem escreveu já mal existe. Mas, voltando a ela, espero voltar a mim mesma, e dar sentido a esses anos que passaram, justo no momento em que a faculdade acaba e, junto, projetos de transferência para bem longe. Entregar o texto a vocês deve ajudar. É essa afinal uma das idéias do blog, tirar da gaveta e, se quisermos, sair do armário... Fiquem à vontade para publicarem seres que fazem barulho lá de dentro da gaveta.


Em “Traduzir-se”, Ferreira Gullar cria um eu-lírico divido em duas partes, as quais vai caracterizando estrofe por estrofe, em campos semânticos opostos, possíveis de sintetizar na seguinte oposição: positividade versus negatividade. Estes termos não estão no poema, mas logo na primeira estrofe, enquanto uma parte é todo mundo, a outra é definida negativamente: é ninguém. Não são conceitos valorativos, uma negativa é uma proposição que diz “não é”, está no campo semântico da barreira, da ausência; positiva é a proposição que diz “isso é”, é construção, presença.

O poema monta-se até a penúltima estrofe conforme um esquema de quadras iniciadas sempre pelo mesmo verso: “Uma parte de mim”. O segundo verso dirá uma propriedade desta “parte de mim”, e terminará todas as vezes com dois pontos, anunciando a oposição do terceiro verso, que começa sempre com “outra parte” (figura de linguagem de repetição chamada anáfora), e pode consistir apenas nisso. O quarto e último verso de cada uma das seis primeiras estrofes dirá uma propriedade da “outra parte de mim”, oposta à propriedade da primeira parte. A última estrofe sai do paralelismo desse esquema e constitui-se de cinco versos.

Durante a leitura, entendemos que aquilo que o poeta chama de “Uma parte de mim” é sempre a mesma parte, por ocupar sempre o mesmo lugar na estrofe e por receber as propriedades do mesmo campo semântico (o da positividade). São elas: “é todo mundo”; “é multidão”; “pesa, pondera”; “almoça e janta” e “é permanente”. O que aparece como “a outra parte”, e já ocupa uma posição gauche, excêntrica, porque é “a outra” e vem em segundo lugar, define-se assim: “é ninguém:/fundo sem fundo”; “estranheza/ e solidão”; “delira”; “se espanta” e “se sabe de repente”. Na sexta estrofe, última em que se mantém a fórmula, há uma inversão, quando a primeira parte a ser caracterizada, a parte que é a “Uma parte”, está no campo da negatividade: “é só vertigem”, enquanto a “outra parte” é “linguagem”.

A linguagem, enquanto fala, constrói-se de um “fundo sem fundo”, é uma construção (logo, uma positividade) que se baseia em uma ausência, uma origem mítica do caos, da indefinição e inexistência de tudo. Daí a barreira erguida entre significante e significado, daí não existir apenas as correspondências perfeitas, mas também a parte que existe como não-correspondência, como vertigem. A época moderna deixou de lado a metafísica para colocar as questões da ciência e criar as possibilidades da técnica e do conhecimento objetivo, mas o Ser emerge de repente e se faz notar. É a loucura que surpreende a razão, é o delírio em contraponto ao pesar e ponderar. É o recalcado no inconsciente que bate à porta.

O poeta no caso não é romântico nem racionalista. Inserido na tradição ocidental em que se alternam as tendências que retomam ora a Antiguidade Clássica e seu racionalismo, ora a Idade Média e seu obscurantismo, ele opta simultaneamente pela razão e pela loucura: a tradução de uma na outra. Progressivamente, desfaz as oposições que ele mesmo inseriu, escapa do dualismo para chegar na arte. Isso desde o início: na primeira estrofe, “todo mundo” vai ser oposto a “ninguém”, certo, mas também a “fundo sem fundo”, inusitado. Ainda: os opostos rimam, segundo um esquema fixo, sempre nos versos pares, com excessão da última estrofe. Na sexta estrofe, a última em que há paralelismo, a desconstrução do dualismo se intensifica, com a inversão das posições, logo quando é inserido um substantivo forte, com bagagem teórica de longa data: a linguagem. E na sétima estrofe, enfim, é feita a opção pela tradução. Entre uma e outra, ambas.

A tradução não é simples escolha, é “questão de vida ou morte”. Como entender isso? É urgente, primordial, a questão fundamental para se poder viver e formular outras questões. Tradução ou morte. Se isso é arte ̶ Gullar não responde, mas coloca a interrogação, e já é o bastante ̶ então arte é necessidade também, e esta vida de que fala o poema não é a vida biológica, mas uma vida com arte, com vigor, com vida. Para tanto, um caminho (não diremos o único, porque o poema, não deve ser à toa, termina com ponto de interrogação), é traduzir-se, uma parte em outra parte, ser em um só tempo sujeito e objeto, sendo que no objeto sem linguagem, na vertigem também reside o sujeito.


TRADUZIR-SE
Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
̶ que é uma questão
de vida ou morte ̶
será arte?
(Na vertigem do dia, 1980, Ferreira Gullar)

Luiza Trindade Oiticica

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